Comecei a escrever um comentário ao último e excelente texto de Márcio de Carvalho, mas como me estendia demais, achei melhor publicar em forma de um novo post. As reflexões políticas em torno da democracia são quase tão antigas quanto o próprio regime. Talvez pela natureza do embate de ideias que ela permite e da qual depende, a democracia tenha sido mesmo o solo fértil de onde floresceu todo o nosso pensamento político ocidental. Como quase sempre, foi Platão quem nos forneceu as bases para uma reflexão mais profunda.
Mestre e personagem de quase todos os Diálogos escritos por Platão, Sócrates, como todos sabem, foi condenado à morte após um processo que trazia em si duas acusações centrais: impiedade diante dos deuses e corrupção da juventude. O que muitos desconhecem é que o filósofo foi condenado por um regime democrático. Sabe-se que a democracia é invenção grega; sabe-se que Sócrates foi condenado à morte. Nem sempre se sabe, porém, que os dois fatos estão intimamente ligados.
Na verdade, o processo contra Sócrates foi o coroamento das disputas políticas e das inimizades que o filósofo atraiu em anos de prática discursiva nas ruas de Atenas. Crítico mordaz da democracia, foi ele quem primeiro apontou a natureza problemática desse regime. E dois problemas por ele questionados foram precisamente o da forma como se dava a participação e a necessidade de conhecimento técnico na hora da tomada de decisões. Aquilo, portanto, que Márcio Carvalho discutia e seu texto. O decisivo nos textos de Platão é que a argumentação filosófica se alia à experiência existencial. Assim, as reflexões socráticas em torno das duas questões podem ser realçadas com a atuação do próprio Sócrates na vida democrática de Atenas.
Em um evento histórico, a batalha de Arginusas, aconteceu de generais atenienses regressaram de uma batalha sem recolher os corpos dos mortos em combate. Como mandava a lei, todo ateniense tinha direito às honras fúnebres. Os generais, deixando os corpos para trás, negaram aos mortos um direito sagrado. Foram, por isso, levados a julgamento. Justamente nesse processo, Sócrates foi sorteado para ser o juiz máximo do tribunal. A lei dizia que cada general deveria ser julgado separadamente, mas o povo decidiu julgá-los em bloco e condená-los à morte. O filósofo viu a fissura básica da democracia, pois o povo não conhecia as leis e julgava como se estivesse acima delas; a essa primeira inconsistência, somava-se outra: a atuação dos retóricos e demagogos. Aquele que mais estivesse em condições de convencer o “demos” seria condutor de suas decisões.
Ao longo de seus Diálogos, Platão expõe inúmeras vezes a polêmica de Sócrates contra os sofistas e as fragilidades da democracia. Numa passagem bastante dramática, quando ameaçado por um de seus interlocutores, Sócrates afirma que ele e o demagogo diante do povo são como um médico e um cozinheiro ante uma criança. Sócrates é o médico e propõe um tipo de alimentação que não agrada a criança, mas lhe faz bem; o demagogo é o cozinheiro que, para aliciá-la, oferece pratos saborosos, mas que sabidamente vão lhe fazer mal. Desde então, é inevitável dissociar da democracia a figura do demagogo. Tanto é assim que em seu clássico texto, A política como vocação, Max Weber o elege como um tipo característico da política ocidental.
Embora nossa democracia seja em essência diferente da ateniense de Sócrates, talvez seja impossível anular a atuação do demagogo na hora da participação do povo. Daí Márcio Carvalho ter lembrado que uma das formas de resguardar a integridade do regime seja reservar muitas decisões àqueles que têm conhecimento técnico. A rigor, em Atenas já era assim, pois o povo deveria no mínimo conhecer as leis, mas na prática as coisas se passavam de outra forma. Isso talvez explique por que deixamos de lado a democracia direta, como a ateniense, e adotamos uma forma representativa. As democracias modernas não dão ao povo o poder de decidir tudo o tempo todo. As raras exceções são os plebiscitos. Usando o exemplo dado por Márcio Carvalho, seria impossível submeter à apreciação universal qual taxa de juro adotar porque o povo não tem conhecimento técnico para decidir e certamente haveria um demagogo a defender em nome do povo uma taxa que supostamente lhe beneficiasse. Seria o típico caso da disputa desleal entre o médico e o cozinheiro. É possível, então, ao povo, furtar-se a atuação dos demagogos? Parece que não.
Diferente da tradição clássica que se inicia com Platão, Maquiavel vai ditar novos rumos para a teoria política. Tomando os homens como são, em vez de refletir sobre regimes que nunca existiram e que jamais existirão, o pensador florentino pensa uma atuação política do Príncipe a partir da verdade efetiva das coisas. E ninguém na história jamais foi tão vilipendiado por dizer tanta verdade. Numa Itália dividida em várias cidades enfraquecidas, Maquiavel considerava urgente que um príncipe não apenas as reunisse, mas que mantivesse o poder. Para tanto, seria necessário considerar a natureza pérfida dos homens e o preceito de que o povo quer ser enganado. É preciso ser bom, mas sobretudo entrar no mal, pois em poucas oportunidades o príncipe teria de ser bondoso, mas constantemente agir de acordo com o maldade. Ora, para cada conselho que dá, Maquiavel arrola uma gama de exemplos tirados da história, mostrando-nos, com eles, que as ações bem sucedidas são efeitos de ações que, via de regra, todos consideram más.
Meu amigo Pedro, professor da engenharia, em conversas que tivemos outro dia, lembrava-me do assassinato de César em pleno Senado. Participaram do conluio vários de seus antigos aliados, sendo o cabeça do golpe seu grande amigo Brutus. Daí a famosa frase que reflete o espanto de um César já ensangüentado: até tu Brutus? Brutus é sempre descrito como um tipo ponderado e parcimonioso, mas que olha sempre de soslaio. Talvez o mais perigoso tipo de demagogo. A ação de Brutus antecipa em vinte séculos a política defendida pelo presidente Americano Roosevelt, conhecida como Big Stick (Grande porrete). Seu lema era: "fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete" (Speak softly and carry a big stick). Na frente, seja doce, sorridente, suave, agrade a todos; tenha, porém, sempre à mão o porrete para bater quando o outro virar as costas.
Mas o que Pedro lembrava é que, em nome do suposto perigo que representava César, os conspiradores o assassinam em pleno Senado, o lugar mais significativo da República Romana. Tal como no caso de Sócrates, são aqueles que mais falam em defesa dos direitos e da democracia os que agem de forma tirânica e ditatorial. De fato, é de desconfiar quando, em pleno regime democrático, alguém ou um grupo comece a invocar os valores da democracia e os perigos que ela corre. Na história recente do Brasil, tal como os acusadores de Sócrates e os assassinos de César, tivemos um golpe de Estado que engendrou uma ditadura de 21 anos, cujos arautos diziam temer pelo estado democrático, daí a tomada do poder. Essa, aliás, é uma acusação que o próprio Sócrates já fazia quando alertava que a democracia corria sempre o risco de tornar-se uma ditadura porque o povo se deixa iludir pelo discurso de quem se diz ser a única salvação para o regime da liberdade. Assim é que não raro surgem ao longo da história os caudilhos, ditadores e tiranos de toda sorte. Quando assumem o poder, some a fala suave e resta apenas o porrete.
Antes de me encaminhar para a conclusão, queria lembrar a interpretação genial que Rousseau fez de Maquiavel. Para o filósofo francês, O Príncipe não é um livro escrito para o soberano. Toda a maquinaria do poder que Maquiavel expõe seria justamente para que o povo pudesse ter conhecimento das estratégias políticas e assim poder se defender delas. Pelo menos num ponto Rousseau tem razão, pois se é certo que Maquiavel é o instrumento eficaz para a atuação política, não é menos verdade que ele nos ajuda a proteger-nos dessa mesma atuação. Ganhamos com O Príncipe não apenas regras para conquistar e manter o poder, mas um poderoso instrumento de análise que nos permite desconfiar das táticas para sua aquisição. Quando virmos um político sorridente, com fala suave, tentando agradar a todos, devemos ter o cuidado de olhar se ele não traz um porrete escondido. E todo demagogo de agora já foi posto diante de nossos olhos nas análises e exemplos que Maquiavel nos deixou em. Daí o outro preceito do filósofo de que a história é a mestra da vida.
Acredito que, em termos nacionais, o Brasil tem feitos avanços políticos. Temos hoje instituições mais sólidas, eleições asseguradas, mandatos presidenciais concluídos, o que sempre foi raro em nossa jovem República. Na mesma escala nacional, o que continua podre é um congresso formado por políticos eleitos em seus currais eleitorais, onde ainda temos uma política efetiva que expressa a velha e bolorenta noção de um país atrasado, com compras de votos, desmandos, ineficiências as mais esdrúxulas, enfim, o palco onde o mais das vezes atuam só os demagogos. Como o povo jamais vai ler Maquiavel, é preciso encontrar outra solução para atenuar os efeitos da demagogia. Wagner Teles começou a fazer o trabalho, denunciando a apropriação do trabalho alheio que sido feito nos últimos tempos por estas paragens.
por Márcio Lima