domingo, 22 de agosto de 2010

"Natureza e Civilização", por Márcio Lima

Meu último texto gerou algumas conversas interessantes. Como elas não foram registradas por escrito, reproduzo-as agora laconicamente. Ouvi, em primeiro lugar, comentários segundo os quais o blog finalmente abriu espaço para as “coisas boas” do Oeste; a seguir, alguns professores, que têm também já o hábito de ciceronear outros professores que aqui vêm participar de bancas, me fizeram relatos sobre outras impressões muito afins àquelas dos professores do concurso da banca de francês que relatei, ou seja, alguns lugares na cidade (bares e restaurantes) se revelam aprazíveis, mas sobretudo a natureza exuberante provoca um “encantamento”.

Quero, porém, demorar-me mais na primeira questão, naquela sobre as “coisas boas do Oeste”. A concepção deste blog tem a ver com um desejo de criar um espaço de reflexão sobre o lugar onde moramos. A vontade inicial, ainda que de modo muito seminal, era a de criar um jornal impresso. Devido à dificuldade de tal ambição, e dada a urgência da reflexão, resolvemos um tanto espontaneamente criar um blog. O primeiro passo foi dar um nome. Por sugestão de Márcio Carvalho, decidimos por oestemaquia. Apesar de nunca termos discutido todas as possibilidades paras as quais o nome aponta, o certo é que pelo menos três sentidos lhe podem ser atribuídos. Em primeiro lugar, há uma paráfrase amistosa a um famoso endereço virtual da região. Para aquele que, por exemplo, tenta ter acesso ao “Oestemaquia” por meio do Google, este site questionará se o pesquisador não quis dizer “Oestemania”. Estamos, assim, à sombra do site que nos inspirou. Há também o segundo sentido, que recai sobre o verbo maquiar, que é o ato de mascarar algo, de tentar dar a algo ruim um aspecto melhor. Sem dúvida que esse é o sentido mais forte, pois expressa bem a direção deste espaço, que é a tentativa de desmistificar ou tentar discutir certas questões para além da sua aparição a princípio mais evidente.

Há, ainda, um terceiro sentido a que ainda podemos apelar. Em grego, maquia significa guerra. Titanomaquia, por exemplo, significa guerra de Titãs, e no contexto mítico refere-se à luta que deu a Zeus a vitória sobre seus oponentes, assegurando-lhe a instalação da justiça e do legado mitológico tal como o conhecemos. Como sempre acontece, antecipando reflexões posteriores, a passagem do caos primordial ao reino da justiça divina conquistada por Zeus, a narrativa mítica nos faz refletir sobre aquela passagem de que fala os filósofos modernos, chamados contratualistas, do estado de natureza para o estado governado por leis, onde a política substitui a força. Rousseau, por exemplo, considera o estabelecimento da propriedade privada como o ato fundador da sociedade: “o primeiro homem que cercou um terreno e disse é isto é meu, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”, afirma o filósofo. Tudo isso para lembrar que a questão da propriedade privada, por estas bandas, parece testemunhar muito mais uma sociedade regida pelas forças físicas do que pelas leis propriamente. Voltando a um ponto que mencionei há algum tempo, basta alguém procurar por escrituras para saber do que falo. Não seria de todo descabido invocar o terceiro sentido da palavra maquia para expressar a falta de fundamentos basilares que regem as sociedades. Se nem a questão da propriedade privada foi resolvida no Oeste baiano, isso significa que o Contrato Social ainda não está em pleno vigor. Ainda vivemos, de alguma força, sob a pressão da força que caracteriza a guerra de todos contra todos, situação limite descrita por outro filósofo contratualista: Hobbes.

Mas volto à questão que motivou essa longa digressão. Não é por falta de atrativos que este espaço se concentra em apontar para o que há de ruim na região. Isso acontece simplesmente por que nosso objetivo é refletir sobre problemas. E desde logo isso me impele a transformar as ditas "coisas boas" em matéria que merece outra abordagem. Isso significa dizer que, infelizmente, as belezas naturais da região parecem mais reforçar do que contradizer as mazelas sociais e políticas. Não é verdade que aos domingos as pessoas vão ao Rio de Ondas lavar a alma maculada na semana pela poluição auditiva, visual e, sobretudo, olfativa? Pondo na balança, a água podre do esgoto a céu aberto parece valer menos do que a água cristalina do Rio, ou seja, o Rio de Ondas parece compensar o fato de não haver saneamento básico, de modo que ficamos todos em paz. Essa comparação me leva a pensar que, em Barreiras, a natureza parece estar sendo um entrave à civilização. Explico-me.

Se morássemos num lugar sem grutas, cavernas, cachoeiras e rios em abundância, talvez a população não aceitasse com tanta paciência os problemas que grassam dentro da cidade. Quando, em 2006, fui aprovado no concurso, e já à espera de vir para Barreiras – prestei concurso em Salvador –, fui à internet buscar informações sobre a cidade para onde me mudaria. Como hoje, a melhor página de informações que encontrei foi a da prefeitura. Claro que eu já tinha notícias daquilo que muitos sabem fora da região, que Barreiras é uma cidade do interior desenvolvida, desenvolvimento propiciado graças à soja e ao agronegócio. – A soja continua exercendo o papel publicitário, o elo entre a cidade e agricultura. Mas, afora essa informação geral, acabei descobrindo na internet outros atrativos da região, quase todos ligados à exuberância natural, além do arsenal pré-histórico que me chamou a atenção. Ora, para alguém que cresceu no semi-árido, acostumado a rios temporários, viver numa cidade cortada por dois rios exercia um fascínio nada desprezível.

No entanto, as primeiras impressões em nada confirmam as expectativas. Primeiro, porque a parte urbana de Barreiras é feia, as ruas assustam, os imóveis nem de longe fazem jus aos preços praticados. Culturalmente, a vida da cidade é paupérrima. Aliás, falar em vida cultural é muita bondade. No fim das contas, a natureza em nada estende seus tentáculos à parte urbana. Há, ao contrário, uma cisão muito grande entre um espaço e outro. Aos poucos, as belezas daquela servem para nos fazer escapar à feiúra desta. Mesmo os dois rios não conseguem impor sua beleza quando atravessam a cidade, pois lhes falta trabalho paisagístico. Ao contrário, a beleza natural erode dentro da cidade. Quem já viu pessoas fazendo poses no cais do Rio Grande para tirar fotos, de modo a integrar no retrato cidade e rio? Se isso ocorre, é apenas por motivos prosaicos, não como lembrança de uma paisagem que se deva guardar. Um exemplo dessa contradição entre natureza e civilização pode ser verificado também nas entradas de Barreiras.

Quem, com efeito, atravessa a cidade pela famigerada BR 242 percebe uma mudança radical do entorno quando paulatinamente vai entrando na área urbana. Vindo de Salvador, logo a visão deixa de ver as serras e a paisagem do cerrado para notar, de um lado e do outro da rodovia, as ruas sujas, com a terra vermelha dando mostras de que a urbanização passa longe. Do mesmo modo, quem vem de Brasília logo se despede do cerrado e depara com um trecho urbano cuja imagem modelar é a do entorno da rodoviária. Em geral, o espaço que se desenvolve ao redor de rodovias não costuma ser o símbolo da urbanidade. No entanto, ao contrário do que é comum, a BR 242 define o traçado principal da cidade. Em torno dela, a cidade se desenvolveu: a prefeitura está nela. A Câmara de Vereadores está nela. A universidade mais antiga também. Quase todas as referências urbanas de importância estão a menos de um quilômetro dela. Ela é nossa Avenida Paulista.

Uma questão crucial nessa relação tensa entre natureza e civilização é saber por que, estando localizada numa região tão privilegiada em termos naturais, e não sendo nem de longe uma cidade miserável em termos econômicos, Barreiras é o que é. Daí entendemos por que, não estando em harmonia o aspecto urbano com a natural, este acabe servindo de escape para “sublimar” o caos da cidade. Mas antes de nos entregamos ao idílio romântico de volta à natureza, ainda cabem mais algumas reflexões.

Por Márcio Lima