terça-feira, 23 de novembro de 2010

"Deus e o Diabo na Terra do Sol", por Márcio Lima

Quando cheguei em Barreiras, em meados de 2006, deparei imediatamente com uma manifestação contra um projeto do então prefeito Saulo Pedrosa. Algo relacionado à Baía de Guanabara. A nossa, claro. Aquela pressão popular seria apenas uma demonstração do que eu poderia perceber depois: a grande impopularidade do ex-prefeito. Tanto que os dois anos restantes foram de extremo desgaste, culminando com uma votação inexpressiva da candidata da situação, Maria Anália, nas eleições municipais de 2008. No pleito deste ano, quando soube da candidatura de Saulo para a Câmara Federal, cheguei a pensar que a forma como ele conduziu o fim de seu mandato e a sucessão havia sido uma estratégia.

Impopular como estava, indicou alguém sem uma carreira política consolidada para colher ele próprio os frutos dois anos depois. Assim, pensava eu, sabendo que não conseguiria ser reeleito, tampouco fazer sua sucessora, Saulo anteviu que a (o) próxima (o) prefeita (o), por não ter feito nada em dois anos (2008-2010), estaria ainda mais impopular que ele, de modo que o caminho para sua candidatura seria menos árduo. Trocando em miúdos: se o povo achava ruim seu governo, veria que sua sucessora era ainda pior. E como o povo só olha para o instante, quem estiver contra Jusmari, estará ao lado do povo. Não sei se foi esse realmente o cálculo, mas as eleições de 2010 têm um quê de intrigante.

Ora, parece-me que a gestão atual padece de uma rejeição ainda maior que a anterior. Em grande medida, o fator essencial para a eleição de Jusmari foi a esperança de que ela representava o novo e de que finalmente seria a solução para os problemas de sempre. Como isso não aconteceu, a revolta permanece. Todavia, se a atual prefeita gera tamanha insatisfação, por quê, dos três deputados eleitos, dois são seus aliados? Para mim, a única explicação possível é que há uma parcela de eleitores “fiel” à prefeita, ou seja, os evangélicos. E tenho boas razões para deduzir que eles realmente foram o fiel da balança. De fato, basta visitar a página de Fernando Machado e perceber que, quando é publicada alguma matéria sobre a prefeita, os comentários em apoio a ela são todos de teor religioso.

E assim caminha nossa política local. Quando Saulo era o prefeito, impossível imaginar que a situação podia piorar. Mas piorou. O que nos faz pensar que, embora inimaginável, as coisas podem ficar ainda mais trágicas. Podemos esperar uma boa atuação dos dois deputados da base de Jusmari? Vejamos, por exemplo, o caso de Kelly Magalhães. Nas entrevistas que concede e em seu blog, o discurso dela tem sempre o mesmo matiz: ataque aos opositores e defesa ferrenha e incondicional de sua aliada. O que é normal, principalmente quando não se tem trabalho para mostrar. E é justamente esse o problema, pois seu discurso é sua obra. Pergunto o que fez a vereadora nos últimos dois anos de seu mandato que lhe dá crédito para um bom mandato de deputada? Nesse tempo, sua obra foi quase que exclusivamente defender a prefeita, e para tanto usou seu cargo de presidente de câmara. Fato, aliás, para o qual não precisou de muito esforço, uma vez que não há oposição naquela casa. Fica muito evidente que faz parte do acordo político. Uma oferece apoio irrestrito e incondicional, e a outra assegura os votos necessários rumo à Assembleia Legislativa. Se o pacto tinha validade até as eleições de 2010, talvez haja alguma esperança. Se não, corremos o risco de ter uma deputada em Salvador trabalhando tão-só para contornar as inúmeras denúncias contra a prefeita a Jusmari, caso esta não seja cassada.

Parafraseando um conhecido adágio mexicano, pobre Barreiras, tão perto de Deus, tão longe da Bahia.

Por Márcio Lima

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

"A Índia Surda que Dançava", por Poty Lucena

O desfile das tribos de índios durante o carnaval, regido ao som agudo da gaita (uma espécie de flauta de metal), ritmado pela batida de tambores, triângulo, tudo isso compassado pelo estalo de um arco e flecha de madeira, faz parte de uma tradição de quase de 100 anos em João Pessoa/PB e é responsável até hoje pela afirmação da influência da cultura indígena na formação da identidade do povo nordestino, especialmente o da Paraíba.

E foi num desfile carnavalesco das tribos indígenas na década de 70 que um militar, um homem branco, gordo e alto, tenente músico do exército, notou algo interessante e surpreendente com uma componente da agremiação que era surda, muda e dançava o passo marcado acompanhando toda a tribo com sincronia de invejar campeã de nado sincronizado. Após a apresentação o tenente curioso e teimoso, em uma linguagem de sinais rudimentar, quis saber como a índia conseguia “escutar” a música. Com o dedo indicador, e um sorriso de surpresa, a índia apontou para a barriga e explicou para o tenente de onde vinha a sensação do som. Ali começava a saga de um dos maiores folcloristas do Brasil, que montou uma banda de surdos e mudos (isso mesmo!) com metodologia própria a partir de um trabalho voluntário de educação para deficientes, na época uma grande novidade que ganhou as manchetes dos jornais e revistas nacionais.

Resgato este exemplo para falar do tamanho do desafio que hoje nós da Universidade Federal da Bahia, enfrentamos para prover de educação pública de excelência aos muitos que nunca tiveram direito a uma educação pública de qualidade. É caso comum a origem humilde dos nossos estudantes que chegam trazendo na bagagem, além da saudade e o orgulho dos pais, a história de descaso com a educação pública fundamental e média e o desabafo da injustiça disfarçada de revolta. Revolta que em poucos instantes se transforma em um sorriso de vitória ao se darem conta que venceram e que conseguiram chegar à Universidade. A medida do sucesso do professor é do tamanho do sucesso do estudante. E a transformação dos estudantes alijados de boa parte de sua formação básica em profissionais disputados e lideranças é a sensação mais gratificante da vida de um professor.

Após 04 anos de Oeste da Bahia e da construção do Instituto de Ciências Ambientais e Desenvolvimento Sustentável da UFBA em Barreiras consigo entender que a teimosia e a curiosidade do Tenente Lucena, meu avô, é a fórmula que alimenta a nossa sensação de vitória que, por sua vez, é do tamanho do desafio que todos nós enfrentamos nestes 04 anos. Nesta curta história, fizemos história e travamos batalhas, literalmente, para desfazer a injustiça e o descaso público que persiste, para garantir o respeito ao bem mais precioso do ser humano, o conhecimento.

*Para conhecer e assistir um pouco das tribos indígenas do carnaval tradição da Paraíba acessem este link.

Por Poty R. de Lucena

terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Por um Conto de Réis", por Wagner Teles

... Da gasolina que custava mais do que o que valia?

Não! Esse assunto não condiz com a índole do OesteMaquia... É mesmo preferível tratar de uma qualquer experiência idílica, ainda que seja uma que nos tenha chegado na espécie de relato incrível.

E por “idílico” designamos, com Barthes, “todo espaço de relações humanas definido por uma ausência de conflito”. Portanto, uma experiência marcada por aqueles elementos em relação aos quais homem algum nutre qualquer interesse. Como não há, nem no melhor dos mundos possíveis, uma tal experiência, talvez um mundo idílico fosse aquele no qual o homem se orientasse em razão de um único fim. Mais do que investir seu tempo em formas improváveis, ele seria capaz de investir-se todo em um único objeto. Não se trataria assim, essa vida monotrópica, da negação do interesse ou da inclinação, antes sim da negação de tudo o que possa dividir, separar, repartir, diferenciar. O mundo idílico, por essa perspectiva, seria um mundo sem mistura, porque somente aí o homem poderia encontrar-se livre de dilaceramentos. Nesse mundo, talvez, não conhecêssemos a dúvida ou a hesitação que tanto caracteriza a consecução de nossos planos. E isso nada tem a ver com utopia. Trata-se, isso sim, de uma imagem que criamos e da qual nos tornamos reféns.

Esse mundo idílico não deixaria espaço à hesitação, na mesma medida em que anularia as diferenças ou mesmo a possibilidade de termos que nos sujeitar à ordens contrárias aos nossos anseios, os mais imediatos. Como um mundo assim, se existe, não fora descoberto nem pelos nossos patrícios, continuamos a viver como se nada fugisse de nossos cálculos, contrariando os desígnios mais secretos que inventamos. E é exatamente porque não há um mundo assim que ter amigos é uma desvantagem. Os amigos sempre estão prontos a nos perdoar um desvio, qualquer deslize. Eles jamais denunciam nossas faltas, mesmo quando elas contrariam fundamente os seus desejos. Como se nos protegessem de nós mesmos, eles permitem que nos entreguemos impunemente ao que temos de pior: nossa inclinação à maquinação da maldade. Os inimigos, porém, estão sempre prontos a denunciar qualquer deslize, mesmo aqueles que saltam de nossas ações como resultado inocente do acaso. Por isso são úteis. Afinal de contas, na mesma medida em que nos impingem a força do regulamento, não permitem que nos entreguemos aos braços da maldade cotidiana e que nos parece tão natural. Ironia ou não, um amigo é que me fez pensar assim.

A verdade, no entanto, o que mais importa, é que deixei Barreiras no cair da tarde e a gasolina custava 2,89; tão logo o dia pesava sobre os ombros dos que haviam acordado em virtude da labuta diária, em Feira de Santana, a gasolina já custava 2,21. Registre-se que nesse caso a gasolina valia exatamente o que custava. Uma dádiva dos deuses a todos quanto não possuam santos de apego? Tratava-se apenas de uma placa dessas que costumam ser habituais em postos de combustível. Porém, o Diabo Vesgo não me deixou escapar de seus versos.

Talvez sonhasse quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada,
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

Raios do luar iluminada? Estrelas trêmulas? Subia uma escada? Não! Era apenas uma placa que parecia situar-se em um mundo idílico, e que, por força da providência, passava agora a lançar desconfiança sobre os que transitavam pela BR 324. Confesso, não creio em coisas incríveis. No entanto, a vida se passa como naqueles filmes nos quais um prego, mesmo um prego, não entra em cena, senão para cumprir um papel, ainda que sirva unicamente aos propósitos de alguém cometer suicídio dependurado nele ao final da trama. Não teria sido, portanto, sem razão que a placa estava ali.

Voltei a dormir, talvez assim voltasse a sonhar e o peso da realidade fosse dissipado. Tentei, e tentei sabendo que fracassada a tentativa, afinal nem o mais intrépido coração de pedra resistiria à realidade tão idílica, tão irreal. Parei e perguntei a um frentista:

- É deveras gasolina o que vendem aqui por 2,21?

- Sim, respondeu ele com um aceno sisudo e indiferente, como se estivesse diante de um lunático.

Ele é personagem de um conto de fadas e eu é que sou lunático.

Continuei a viagem, talvez não passasse mesmo de um sonho daqueles que alguns têm enquanto dormem. Acordei, já em Salvador, por uma placa que não simplesmente anunciava, mas gritava: “Gasolina Comum e Pagã – 2,19”. É o fim do mundo! Nem fora batizada, já é vendida por qualquer bagatela. A ruga das grandes preocupações então surgiu em minha testa e passei a pensar porque custava tão caro sair de Barreiras e pagava-se tão pouco para voltar. E mais, em virtude de que custava tanto permanecer lá quando do retorno. Não é necessário ostentar em um dos dedos um anel de graduado em economia para saber que, regra geral, a carestia de um dos elementos da cadeia de produção encarece o produto final. Explica-se porque a tarifa de táxi em Barreiras custa mais caro do que em Salvador, que tem uma das tarifas mais caras do país em razão de ser uma cidade turística. Outras tantas quimeras permanecem sem explicação, e nem a hidromancia ousa entendê-las.

Antes que passasse a lastimar pelo destino dos que pagam tanto pelo que custa tão pouco, um outdoor despertou-me por dizer “Respeite as diferenças!”. E não passava de um anúncio da própria agência de publicidade, por certo carente de anunciantes devido à corrida eleitoral. Como lendo anúncios publicitários é que se vai longe, esse mesmo outdoor seguia-se de um outro: “Internet Banda Larga, 1 Mb, 24,90.” O sonho teimava em prosseguir. Para tanto, bastava que tivesse sido acrescentado ao anúncio “funciona!”.

Os sonhos sempre são melhores que a realidade até que terminem. Antes que avistasse um boi voando, liguei para uma amiga e lhe ofereci um galão de cinqüenta litros por míseros 2,50 cada litro. “Louco!” – Ela bradou e, descrente, desligou. De volta ao mundo em que pagamos até os pecados que jamais cometeremos, nessa vasta deselegância que é a vida, estava diante da Baía, onde a realidade é sempre mais do que a realidade, e nem por isso me deixei convencer de que a mesquinhez humana é uma invenção recente do oeste do estado. Afinal, tão vasta e eterna que, inclusive os que não julgam tê-la, ou a possuem ou são simplesmente possuídos por ela.

Por Wagner Teles