segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Do mito à “realidade”, por Márcio Lima

“O mito é o nada que é tudo”.
Fernando Pessoa.

O mito de Édipo é, sem dúvida e grandemente graças a Freud, o mais conhecido de toda a mitologia. Não bastasse a importância de toda a religião grega, a psicanálise ajudou a tornar imorredouro o que por si mesmo já o era. Mas, para além da fama de seu nome, o rei Édipo, por meio de sua descendência, continuou a regar o solo de nosso simbolismo. Assim é que a história da sucessão de seu trono nos legou a mais bem representativa simbologia sobre a relação beligerante inerente ao poder. Trata-se do conflito entre Creonte e Antígona. Esta, filha de Édipo, aquele, seu tio, irmão de Jocasta. Polinices, também filho de Édipo, foi expulso do reino, e, do estrangeiro, comandou uma revolta para retirar o poder de seu tio. Ésquilo, o grande poeta trágico, narrou essa história na tragédia intitulada Os sete contra Tebas. Morto Polinices, Creonte proibiu que seu sobrinho pudesse ser sepultado, o que na religião grega significava a violação de um direito sagrado, pois o morto não poderia ter uma vida de paz no reino dos mortos. Antígona desafia, então, a autoridade do poder instituído e pretende sepultar seu irmão, tal como manda sua consciência. A tragédia Antígona, imortalizada por outro poeta trágico, Sófocles - que também nos legou uma trilogia sobre Édipo – tem sido lida e relida através dos tempos, uma vez que ela representa a contraposição entre a consciência individual e o poder do Estado. O que o ensinamento mítico no revela é que, entre o indivíduo e o Estado, quase sempre não há coincidências de objetivos: a vontade de um só pode ser satisfeita em detrimento da do outro.

Em seu livro, Raízes do Brasil, no capítulo mais importante, aquele que trata do homem cordial, Sérgio Buarque de Holanda inicia suas reflexões sobre o ethos do povo brasileiro justamente pela invocação do mito de Antígona. Para o sociólogo, não pode haver maior erro do que achar que o Estado evoluiu a partir de agrupamentos familiares. Ambos, diz ele, estão em oposição e descontinuidade. Só pode haver Estado onde há transgressão da ordem familiar, e o indivíduo só se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável ante as leis da cidade, se houver essa transgressão, essa superação da ordem familiar em prol do Estado. Quem conhece o mito de Antígona pode imaginar que a sua utilização não exerce apenas um efeito retórico e literário no texto de Sérgio Buarque. Ora, Antígona é, por assim dizer, a heroína, e naturalmente somos levados a compadecer de seu sofrimento, preferindo suas razões à de Creonte. Assim, estamos sempre mais propensos a seguir a razão familiar e não a do Estado. Situação limite a que opõe Antígona e Creonte, Sérgio Buarque a lembra para demonstrar que não pode haver Estado onde impõe o sentimento familiar.

Ao começar suas reflexões sobre a cordialidade brasileira com a polêmica entre Antígona e Creonte, Sérgio Buarque pretende enfatizar o aspecto afetivo de nosso povo, daí sua dificuldade em estabelecer com o outro o tipo de relação exigida pela vida social e política, própria do Estado. Ao ser dado aos sentimentos familiares, o povo brasileiro pensa sempre no particular e corpóreo em detrimento do geral e abstrato. Ao não conseguir desvencilhar-se desses elementos afetivos inerentes à vida em família, torna-se difícil atingir a transcendência sem a qual o Estado não pode bem existir. Embora possa parecer radical sua tese, Sérgio Buarque parece precisar dar destaque às coisas dessa forma a fim de explicar o caos político que rege a vida social no Brasil.

“No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera por excelência dos chamados ‘contatos primários’, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na via doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas” (Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das letras, 2005, p. 146).

Escritas em 1936, cada qual reflita e chegue às próprias conclusões sobre a atualidade dessas palavras. No entanto, elas insistem em falar fundo à nossa consciência. Contemporâneas do primeiro e longo governo de Getúlio Vargas, o presidente chamado de “o pai dos pobres”, elas parecem nos alertar para a insistência com que família e Estado são confundidos. Sabe-se que está prestes a estrear o filme sobre nossa atual presidente, paradigmaticamente denominado “Lula, o filho do Brasil”. Vejam lá de novo família e Estado convivendo como se fossem uma e a mesma coisa. Se deixarmos de mirar para o horizonte mais amplo e nos voltarmos para mais perto, já repararam no Slogan de nossa atual administração regional? “Barreiras, cidade mãe”. Slogans, sobretudo políticos, dizem muito, na medida em que parecem trazer à superfície o que subjaz no inconsciente coletivo, como a revelar de modo condensado nas palavras algo que é de ordem psicossocial. Daí que, no Brasil, a propaganda política mais eficaz ser sempre a que faz apelo à nossa afetividade familiar. Nada poderia ser mais proveitoso para nossa tragédia política e social do que nossa disposição sentimental. Estamos sempre dispostos a tolerar e conviver harmonicamente com os problemas familiares. E isso implica, inexoravelmente, apegar-se ao particular, ao pessoal, sempre com muito afeto e sentimento. Do contrário, agir com a racionalidade e abstração próprias da vida política seria justamente destruir desde a base a família, uma vez que isso nos levaria a atos e atitudes que tornariam impossíveis o convívio próximo com nossos irmãos, pais etc. Se, pois, a cidade é nossa mãe, não importa o que ela seja ou tenha sido, diante de sua agonia e de seus problemas, agiremos sempre de acordo com o que é esperado nesse caso, ou seja, estaremos afetuosamente do seu lado, pois assim é a família, onde os “defeitos” são logo postos de lado. Barreiras, não importa o que você seja, como você é, somos seus filhos, estamos de seu lado. Jamais entenderemos Creonte.

Fica a pergunta: seria mera coincidência a relação, confirmada mais uma vez, em termos muito regionais, entre família e Estado e o caos em que vivemos?

Márcio Lima

4 comentários:

  1. Afinal... se Barreiras é cidade "Mãe", os cidadãos são filhos da p***? Ou de quem? Da Jusmari e do JusMarido? Também somos adotados por uma família cristã e uma prefeitura nem tanto (ou exatamente muito)?
    Grande iniciativa essa do blog...

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  2. As relações familiares aqui vão muito além destas da atual (falta) de administração. Saulo, o antigo prefeito, no seu primeiro mandato, escolheu para secretario Antônio Henrique, seu cunhado, que depois veio a ser prefeito por dois períodos. Antônio Henrique é casado com Antônia Pedrosa, irmã de Saulo, e deputada estadual.

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  3. Destaco também neste slogan o componente "feminino" (porém não feminista) da mãe, do rosa, da tríade (Jusmari, A vice que me escapou o nome agora, e Kelly Magalhães presidente da camara) o que nos levaria a crer que essa é uma cidade onde as mulheres estão no poder, embora as notícias matutinas da Rádio Barreiras engrossem as estatísticas da Lei Maria da Penha.

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  4. "Amor"
    O que eu pensaria a respeito do meu filho se ele chegasse a cometer um assassinato? O que eu pensaria a respeito de um outro filho qualquer?
    Ele seria um completo assassino, marginal, monstro que devereia ser imediatamente banido da sociedade enquanto que o meu filho, (ah! a razão do meu viver) seria, vamos dizer assim, uma espécie de "meio assassino" que seu ato, ao contrario do que deve acontecer ao outro, deve ser relativizado.
    Eis um exemplo de um dos pesos (ou mitos) relativos (e embutidos, encravados, impregnados) a família: "amor maternal incondicional" ou amor superprotetor, castrador, sufocante, egoísta, cego, imaturo (Drummond diz que amar é para maduros), prejudicial?
    Esse é o amor servido nas nossas "melhores famílias" (eca!) e muito provavelmente pela nossa cidade mãe. Amor confuso esse, né? idéias confusas...
    Portanto, caro Márcio, coincidência ou não penso que todo esse caos e talvez demais males do mundo sejam consequência, nao da associação família-estado mas, da distorção que se faz da coisa mais linda que existe, o Amor.
    Que tal a transgressão, não da ordem familiar, mas do sentimento familiar, do amor? Superação do amor que temos nos acostumado a acreditar ser amor. Revolução no ato de amar. Se bem que não é fácil pois, repetindo a citação do poeta, é realmente privilégio de maduros. Talvez não seja a anulação do aspecto afetivo do povo (acho que pode até ser muito saudável, para o proprio Estado e bem social). Pois o amor com suas ricas possibilidades pode ser tanto particular e corpóreo como geral e abstrato.
    Afinal de contas nenhum governante nasce de chocadeira. "Saiba, todo mundo foi neném...Hitler, Bush e Sadan Russein" diz a musiquinha.
    Só precisamos de maduros no poder. Pena que muitos se habilitam a só fazer poesia, rs, se bem que é essa a maneira que encontram para ao mesmo tempo fazer política boa e benéfica, o que não deixa de ser também o caso deste blog, né?
    Ta aí, tratar de desmitificar o amor é um bom ato político.

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