terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Por um Conto de Réis", por Wagner Teles

... Da gasolina que custava mais do que o que valia?

Não! Esse assunto não condiz com a índole do OesteMaquia... É mesmo preferível tratar de uma qualquer experiência idílica, ainda que seja uma que nos tenha chegado na espécie de relato incrível.

E por “idílico” designamos, com Barthes, “todo espaço de relações humanas definido por uma ausência de conflito”. Portanto, uma experiência marcada por aqueles elementos em relação aos quais homem algum nutre qualquer interesse. Como não há, nem no melhor dos mundos possíveis, uma tal experiência, talvez um mundo idílico fosse aquele no qual o homem se orientasse em razão de um único fim. Mais do que investir seu tempo em formas improváveis, ele seria capaz de investir-se todo em um único objeto. Não se trataria assim, essa vida monotrópica, da negação do interesse ou da inclinação, antes sim da negação de tudo o que possa dividir, separar, repartir, diferenciar. O mundo idílico, por essa perspectiva, seria um mundo sem mistura, porque somente aí o homem poderia encontrar-se livre de dilaceramentos. Nesse mundo, talvez, não conhecêssemos a dúvida ou a hesitação que tanto caracteriza a consecução de nossos planos. E isso nada tem a ver com utopia. Trata-se, isso sim, de uma imagem que criamos e da qual nos tornamos reféns.

Esse mundo idílico não deixaria espaço à hesitação, na mesma medida em que anularia as diferenças ou mesmo a possibilidade de termos que nos sujeitar à ordens contrárias aos nossos anseios, os mais imediatos. Como um mundo assim, se existe, não fora descoberto nem pelos nossos patrícios, continuamos a viver como se nada fugisse de nossos cálculos, contrariando os desígnios mais secretos que inventamos. E é exatamente porque não há um mundo assim que ter amigos é uma desvantagem. Os amigos sempre estão prontos a nos perdoar um desvio, qualquer deslize. Eles jamais denunciam nossas faltas, mesmo quando elas contrariam fundamente os seus desejos. Como se nos protegessem de nós mesmos, eles permitem que nos entreguemos impunemente ao que temos de pior: nossa inclinação à maquinação da maldade. Os inimigos, porém, estão sempre prontos a denunciar qualquer deslize, mesmo aqueles que saltam de nossas ações como resultado inocente do acaso. Por isso são úteis. Afinal de contas, na mesma medida em que nos impingem a força do regulamento, não permitem que nos entreguemos aos braços da maldade cotidiana e que nos parece tão natural. Ironia ou não, um amigo é que me fez pensar assim.

A verdade, no entanto, o que mais importa, é que deixei Barreiras no cair da tarde e a gasolina custava 2,89; tão logo o dia pesava sobre os ombros dos que haviam acordado em virtude da labuta diária, em Feira de Santana, a gasolina já custava 2,21. Registre-se que nesse caso a gasolina valia exatamente o que custava. Uma dádiva dos deuses a todos quanto não possuam santos de apego? Tratava-se apenas de uma placa dessas que costumam ser habituais em postos de combustível. Porém, o Diabo Vesgo não me deixou escapar de seus versos.

Talvez sonhasse quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada,
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

Raios do luar iluminada? Estrelas trêmulas? Subia uma escada? Não! Era apenas uma placa que parecia situar-se em um mundo idílico, e que, por força da providência, passava agora a lançar desconfiança sobre os que transitavam pela BR 324. Confesso, não creio em coisas incríveis. No entanto, a vida se passa como naqueles filmes nos quais um prego, mesmo um prego, não entra em cena, senão para cumprir um papel, ainda que sirva unicamente aos propósitos de alguém cometer suicídio dependurado nele ao final da trama. Não teria sido, portanto, sem razão que a placa estava ali.

Voltei a dormir, talvez assim voltasse a sonhar e o peso da realidade fosse dissipado. Tentei, e tentei sabendo que fracassada a tentativa, afinal nem o mais intrépido coração de pedra resistiria à realidade tão idílica, tão irreal. Parei e perguntei a um frentista:

- É deveras gasolina o que vendem aqui por 2,21?

- Sim, respondeu ele com um aceno sisudo e indiferente, como se estivesse diante de um lunático.

Ele é personagem de um conto de fadas e eu é que sou lunático.

Continuei a viagem, talvez não passasse mesmo de um sonho daqueles que alguns têm enquanto dormem. Acordei, já em Salvador, por uma placa que não simplesmente anunciava, mas gritava: “Gasolina Comum e Pagã – 2,19”. É o fim do mundo! Nem fora batizada, já é vendida por qualquer bagatela. A ruga das grandes preocupações então surgiu em minha testa e passei a pensar porque custava tão caro sair de Barreiras e pagava-se tão pouco para voltar. E mais, em virtude de que custava tanto permanecer lá quando do retorno. Não é necessário ostentar em um dos dedos um anel de graduado em economia para saber que, regra geral, a carestia de um dos elementos da cadeia de produção encarece o produto final. Explica-se porque a tarifa de táxi em Barreiras custa mais caro do que em Salvador, que tem uma das tarifas mais caras do país em razão de ser uma cidade turística. Outras tantas quimeras permanecem sem explicação, e nem a hidromancia ousa entendê-las.

Antes que passasse a lastimar pelo destino dos que pagam tanto pelo que custa tão pouco, um outdoor despertou-me por dizer “Respeite as diferenças!”. E não passava de um anúncio da própria agência de publicidade, por certo carente de anunciantes devido à corrida eleitoral. Como lendo anúncios publicitários é que se vai longe, esse mesmo outdoor seguia-se de um outro: “Internet Banda Larga, 1 Mb, 24,90.” O sonho teimava em prosseguir. Para tanto, bastava que tivesse sido acrescentado ao anúncio “funciona!”.

Os sonhos sempre são melhores que a realidade até que terminem. Antes que avistasse um boi voando, liguei para uma amiga e lhe ofereci um galão de cinqüenta litros por míseros 2,50 cada litro. “Louco!” – Ela bradou e, descrente, desligou. De volta ao mundo em que pagamos até os pecados que jamais cometeremos, nessa vasta deselegância que é a vida, estava diante da Baía, onde a realidade é sempre mais do que a realidade, e nem por isso me deixei convencer de que a mesquinhez humana é uma invenção recente do oeste do estado. Afinal, tão vasta e eterna que, inclusive os que não julgam tê-la, ou a possuem ou são simplesmente possuídos por ela.

Por Wagner Teles

Um comentário:

  1. Texto fantástico!

    Infelizmente, caro está e caro ficará o custo de TUDO no "far west" baiano, enquanto houver alguem que pague sem exitar...

    PS: pra mim o sonho continua melhor que a realidade mesmo depois de acabar, a não ser que vivamos num sonho e esses devaneios sejam a realidade, de fato. rsrsrs

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