Durante certo tempo, tive bastante receio – para não dizer pudor – em expressar algumas ideias, tais como as que expus no último texto. Sempre me lembro de um estudante que reclamava de um professor da UFBA por este falar tão mal da cidade que lhe propiciava o “ganha pão”. Meu receio, contudo, não era o de julgar que não se deve maldizer o lugar onde se ganha o salário, mas simplesmente por respeitar esse sentimento a que podemos chamar de ufanismo, patriotismo, amor à terra etc. Eu mesmo, por exemplo, talvez não gostasse de ouvir de um argentino, morando no Brasil, que o tango é melhor música que o samba, que o nível de escolaridade, de cultura, assim como o bem estar social deles é maior que o nosso; que eles já receberam prêmios Nobel, enquanto nós nunca; que nenhum escritor brasileiro chegou ao nível de Jorge Luis Borges. A única coisa que eu poderia dizer em nosso favor é que o futebol brasileiro é melhor que o argentino, arrolando em seguida os nossos títulos de copa do mundo. Ainda assim, como sabemos, eu ainda teria de ouvir que Maradona foi melhor que Pelé. Aqueles fatos parecem lhes dar o direito a essa arbitrariedade. Conheço, portanto, os melindres que o amor à terra desencadeia. Por outro lado, acredito que o ufanismo pode bem ser o ninho onde é chocado o ovo da serpente.
Volto, assim, a uma questão que havia trazido à cena, e que considero o centro em torno do qual as reflexões sobre os problemas de Barreiras devem orbitar. Por que, estando numa região privilegiada em termos naturais, e sendo produtora de certa riqueza, a cidade é tão malcuidada. Só mesmo um estudo que una investigações históricas, geográficas e sociológicas pode dar uma resposta mais concreta a essa questão, traçando um panorama do desenvolvimento por que passou Barreiras desde o início do ciclo do agronegócio. O que quero expressar são apenas alguns esboços que se delineiam de uma perspectiva mais cultural, pois acredito que a cidade que temos hoje é fruto de um processo “civilizatório” que foi se sedimentando durante seu desenvolvimento.
Como os textos do blog têm expressado até hoje, julgo que problema da cidade é antes de tudo político. Não resta dúvida de que os poderes públicos deveriam conduzir o andamento da cidade; se a partir dos anos 80 teve início em Barreiras um ciclo de crescimento econômico, que engendrou naturalmente o crescimento urbano e populacional, as esferas públicas deveriam ter cuidado para que o processo fosse desencadeado de tal forma que não tivéssemos uma cidade como a que se tem hoje. No entanto, ainda há dois componentes fundamentais para a composição da cidade: o setor econômico e a sociedade civil. Quando vemos a atuação desses dois segmentos, a situação não é mais animadora.
Meu olhar de través para a criação do Estado do Rio São Francisco começou quando vi um dia, na porta de uma mansão situada em meu percurso, todo o entulho de construção jogado bem no meio da rua, e o dono da casa saindo com um desses carrões estampando o adesivo em favor do desmembramento. Nesse caso, ainda considero a ausência do poder público o fator fundamental para criar e desenvolver-se com muita força uma cultura que ela é própria danosa à cidade. Antes de citar alguns exemplos que ilustram isso, quero afirmar que a ausência do poder público é essencial para que o espaço comum seja transformado no depositário do lixo privado. Ora, desde os primórdios das reflexões éticas e políticas, sabe-se que quando a sociedade não cultivou ainda costumes que sirvam ao bem comum, o império da lei obriga seus homens a agir em prol da comunidade, até que tais hábitos se tornem costumes (a palavra ética vem do grego – ethos – e seu sentido mais forte é justamente costume). Como os donos do poder não cumpriram – e não cumprem – seu papel, temos hoje uma cidade onde muitos jogam lixo, entulho, restos de construção onde querem; bairros que surgiram sem planejamento, cujas ruas não têm sequer nome, quem dirá CEP; não poderia, claro, deixar de mencionar o asfalto, pra não dizer que não falei das flores. Ao fim e ao cabo, a atuação da sociedade civil se harmoniza tão bem com o poder público que um passa a ser o espelho do outro. Antes que essa afirmação gere qualquer melindre, o caso é ainda mais grave do que aquela frase de todos conhecida de que cada povo tem o governo que merece. Não se trata disso.
A sociedade civil não pode ser identificada imediatamente com “povo”. Para efeitos de minha discussão, por exemplo, uma questão complexa é justamente a diferença entre o povo barreirense e sua sociedade civil. Quando digo povo, não me refiro apenas aos aqui nascidos, mas também a quem mora, trabalha, paga seus impostos, gera renda, joga lixo na rua, polui o Rio de Ondas etc. Nesse sentido, o povo de Barreiras é, para mim, a melhor expressão de um lugar exemplar. Já quase há uma identidade formada pela heterogeneidade, além de uma cidade com ar cosmopolita. Todavia, é desastrosa a forma como a sociedade civil põe em prática sua “urbanidade”. E é esta, não o povo, que se emparelha com o poder público. Mas em termos civilizatórios, Barreiras não tem contra si apenas essas duas esferas, mas também a econômica.
Com a decência da vida política e cultural, bem como com o desenvolvimento urbano, o agronegócio não quer ter nenhum envolvimento, não quer fazer a cidade desenvolver-se. Ele chega, expande suas garras, e o desenvolvimento surge a reboque, por aquilo que inevitavelmente medra a partir de sua riqueza. Imposto e atração de uma rede de serviço e de comércio. Quando penso nos três setores tradicionais da economia, lembro-me de que a indústria se preocupa em promover cultura, ensino, tal como o comércio. O SESC é um serviço nacional importante, da mesma forma os serviços regionais da indústria, como o SESI e o SENAI. E o agronegócio, o que oferece à população nesse sentido? O ambiente cultural criado em torno dele é algo deletério. É um estilo de vida frívolo e vazio, quando não vulgar, exemplificado no cultivo de vida que bem se expressa na música sertaneja e todas as suas variantes.
Há quatro anos em Barreiras, não me lembro de ter acontecido na cidade alguma apresentação de música popular que não fosse de axé ou de sertaneja. O pianista Artur Moreira Lima passou por aqui com seu caminhão musical. Mas isso foi uma iniciativa dele, que com apoio da Petrobrás tem recursos para levar ao interior do país música erudita. Não foi um projeto da prefeitura, tampouco dos “agentes culturais”. Nem aqueles cantores de MPB que faziam sucesso nos anos 70, que estão no nível de Zé Ramalho, mas cuja presença não se impôs, vem a Barreiras. Podem ir a Ibotirama, Barra, São Desidério, aqui jamais. Na cidade não há público, dinheiro, pessoas dispostas a pagar para assistir a bons espetáculos? Estou certo de que há. Isso, a meu ver, é uma forma de vida cultural cultivada a partir da influência do agronegócio. Isso talvez explique por que saneamento básico e asfalto, fatores decisivos para diferenciar o espaço urbano do rural, inexistam em Barreiras. A cidade parece ter-se tornado um lugar encravado no grande fazendão do agronegócio. E tome música sertaneja.
Volto, assim, a uma questão que havia trazido à cena, e que considero o centro em torno do qual as reflexões sobre os problemas de Barreiras devem orbitar. Por que, estando numa região privilegiada em termos naturais, e sendo produtora de certa riqueza, a cidade é tão malcuidada. Só mesmo um estudo que una investigações históricas, geográficas e sociológicas pode dar uma resposta mais concreta a essa questão, traçando um panorama do desenvolvimento por que passou Barreiras desde o início do ciclo do agronegócio. O que quero expressar são apenas alguns esboços que se delineiam de uma perspectiva mais cultural, pois acredito que a cidade que temos hoje é fruto de um processo “civilizatório” que foi se sedimentando durante seu desenvolvimento.
Como os textos do blog têm expressado até hoje, julgo que problema da cidade é antes de tudo político. Não resta dúvida de que os poderes públicos deveriam conduzir o andamento da cidade; se a partir dos anos 80 teve início em Barreiras um ciclo de crescimento econômico, que engendrou naturalmente o crescimento urbano e populacional, as esferas públicas deveriam ter cuidado para que o processo fosse desencadeado de tal forma que não tivéssemos uma cidade como a que se tem hoje. No entanto, ainda há dois componentes fundamentais para a composição da cidade: o setor econômico e a sociedade civil. Quando vemos a atuação desses dois segmentos, a situação não é mais animadora.
Meu olhar de través para a criação do Estado do Rio São Francisco começou quando vi um dia, na porta de uma mansão situada em meu percurso, todo o entulho de construção jogado bem no meio da rua, e o dono da casa saindo com um desses carrões estampando o adesivo em favor do desmembramento. Nesse caso, ainda considero a ausência do poder público o fator fundamental para criar e desenvolver-se com muita força uma cultura que ela é própria danosa à cidade. Antes de citar alguns exemplos que ilustram isso, quero afirmar que a ausência do poder público é essencial para que o espaço comum seja transformado no depositário do lixo privado. Ora, desde os primórdios das reflexões éticas e políticas, sabe-se que quando a sociedade não cultivou ainda costumes que sirvam ao bem comum, o império da lei obriga seus homens a agir em prol da comunidade, até que tais hábitos se tornem costumes (a palavra ética vem do grego – ethos – e seu sentido mais forte é justamente costume). Como os donos do poder não cumpriram – e não cumprem – seu papel, temos hoje uma cidade onde muitos jogam lixo, entulho, restos de construção onde querem; bairros que surgiram sem planejamento, cujas ruas não têm sequer nome, quem dirá CEP; não poderia, claro, deixar de mencionar o asfalto, pra não dizer que não falei das flores. Ao fim e ao cabo, a atuação da sociedade civil se harmoniza tão bem com o poder público que um passa a ser o espelho do outro. Antes que essa afirmação gere qualquer melindre, o caso é ainda mais grave do que aquela frase de todos conhecida de que cada povo tem o governo que merece. Não se trata disso.
A sociedade civil não pode ser identificada imediatamente com “povo”. Para efeitos de minha discussão, por exemplo, uma questão complexa é justamente a diferença entre o povo barreirense e sua sociedade civil. Quando digo povo, não me refiro apenas aos aqui nascidos, mas também a quem mora, trabalha, paga seus impostos, gera renda, joga lixo na rua, polui o Rio de Ondas etc. Nesse sentido, o povo de Barreiras é, para mim, a melhor expressão de um lugar exemplar. Já quase há uma identidade formada pela heterogeneidade, além de uma cidade com ar cosmopolita. Todavia, é desastrosa a forma como a sociedade civil põe em prática sua “urbanidade”. E é esta, não o povo, que se emparelha com o poder público. Mas em termos civilizatórios, Barreiras não tem contra si apenas essas duas esferas, mas também a econômica.
Com a decência da vida política e cultural, bem como com o desenvolvimento urbano, o agronegócio não quer ter nenhum envolvimento, não quer fazer a cidade desenvolver-se. Ele chega, expande suas garras, e o desenvolvimento surge a reboque, por aquilo que inevitavelmente medra a partir de sua riqueza. Imposto e atração de uma rede de serviço e de comércio. Quando penso nos três setores tradicionais da economia, lembro-me de que a indústria se preocupa em promover cultura, ensino, tal como o comércio. O SESC é um serviço nacional importante, da mesma forma os serviços regionais da indústria, como o SESI e o SENAI. E o agronegócio, o que oferece à população nesse sentido? O ambiente cultural criado em torno dele é algo deletério. É um estilo de vida frívolo e vazio, quando não vulgar, exemplificado no cultivo de vida que bem se expressa na música sertaneja e todas as suas variantes.
Há quatro anos em Barreiras, não me lembro de ter acontecido na cidade alguma apresentação de música popular que não fosse de axé ou de sertaneja. O pianista Artur Moreira Lima passou por aqui com seu caminhão musical. Mas isso foi uma iniciativa dele, que com apoio da Petrobrás tem recursos para levar ao interior do país música erudita. Não foi um projeto da prefeitura, tampouco dos “agentes culturais”. Nem aqueles cantores de MPB que faziam sucesso nos anos 70, que estão no nível de Zé Ramalho, mas cuja presença não se impôs, vem a Barreiras. Podem ir a Ibotirama, Barra, São Desidério, aqui jamais. Na cidade não há público, dinheiro, pessoas dispostas a pagar para assistir a bons espetáculos? Estou certo de que há. Isso, a meu ver, é uma forma de vida cultural cultivada a partir da influência do agronegócio. Isso talvez explique por que saneamento básico e asfalto, fatores decisivos para diferenciar o espaço urbano do rural, inexistam em Barreiras. A cidade parece ter-se tornado um lugar encravado no grande fazendão do agronegócio. E tome música sertaneja.
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Eu havia iniciado este texto antes de ser publicada a matéria da Veja, que tem desencadeado reações, por assim dizer “ufanistas”. Confesso que o título do texto, embora se valha de uma expressão clássica, foi motivado pela reportagem.
Por Márcio Lima
caro Márcio, há uns tres meses venho acompanhando esse blog, desde as matérias sobre o novo plano diretor urbano da cidade, aliás matérias muito bem explicativas para quem não entende do assunto. Sou barreirense, e minha cidade vem acolhendo e enriquecendo muitos que saíram de seus estados sem uma esperança em seus futuros, pois lá (onde dissem serem 'civilizados') não lhe davam expectativas de crescimento profissional. Realmente, o jeito que os políticos vêm administrando esta cidade é lamentável, assim, como todos os outros órgãos de fiscalização do Estado da Bahia. Porém, generalizar que todos os barreirenses ou pessoas de outras cidades que aqui moram (pois me parece a maioria, dificil encontrar um barreirense) foram civilizados por certo forasteiro que ficou rico as custas dessa cidade é revoltante, assim como, disser que todos aqui gostam de pagode e música sertaneja. A humildade é o último grau de sabedoria, e são para poucos.
ResponderExcluirE,os detalhes da reportagem da veja, isso é de gente que não tem conhecimento, ignorante, pq como aqui e em qualquer outro lugar existem pessoas que preferem o seco ou o suave, tinto ou branco, tanto que existe esses tipos para serem escolhidos, isso nao quer disser que tal pessoa é mais ou menos civilizada que outra, é questão de cú (gosto), cada um tem o seu. Ademais, esses que dissem ser tão civilizados porque deixaram a cidade crescer dessa forma?? talvez, seja a ganacia e o egoísmo, que em vezes de ajudar a crescer de maneira certa, só traz maleficios.
Isso ai... é como zuarmos esses imigrantes ignorantes que chegam aqui e nem conhecem um caju, nunca viram certa especiés de animais,nunca montaram um cavalo,não sabem o que é um piqui, uma cagaita ou muito menos não sabem de onde vem o leite, ahuahua...Isso é questão cultural, como de onde esse senhor vem o costume deles é plantar uvas e saborear um bom vinho, que diga-se de passagem é bom mesmo, nosso costume aqui é de fazer cachaça e rapadura, que taambém é ótimooo!!!
ResponderExcluirViva as diferenças, e NÃO AO PRECONCEITO, O MUNDO É DE TODOS!!!
Caro Anônimo do dia 15 de setembro,
ResponderExcluirObrigado por acompanhar nosso blog, e sobretudo por deixar comentários. Não afirmei de modo algum que todos em Barreiras gostam de música sertaneja e pagode. Aliás, afirmei o contrário. O que escrevi foi que em termos culturais, só artistas desses gêneros vêm à cidade. A seguir, questiono justamente por que não há outras opções, porque público existe. Além do mais, não posso "universalizar" porque eu mesmo não gosto dessas músicas e a maioria das pessoas com quem convivo também não. Minha análise é conjuntural. Dizer que em algumas ruas do Bairro Renato Gonçalves têm asfalto resistente porque os moradores pagaram por isso não faz de Barreiras um lugar com asfalto satisfatório.
Saudações,
Márcio Lima
Professor,
ResponderExcluirFenomenal o texto (como sempre), parabéns!
Oras bolas, de que serve a verdade se não para ser dita?
Abração, saúde e paz.
Fernando Machado
Ps: Márcio, será que você poderia me enviar uma imagem sua para postar no Sítio do Zé Dendágua com vossa "escrevinhação"?