terça-feira, 21 de setembro de 2010

"Civilização para Quem Precisa...", por Paulo Baqueiro

Lá pelas décadas finais do século XIX, um proeminente geógrafo francês, de nome Paul Vidal de La Blache, desenvolveu um discurso teórico referendado pelo conceito de “gênero de vida”. Segundo o mestre, a Natureza fornecia todas as possibilidades para que um dado grupo, através da sua ação empreendedora constante e cumulativa, produzisse técnicas, hábitos, usos e costumes que lhe permitissem reproduzir-se socialmente.

Foi justamente a esse conjunto de técnicas e costumes, supostamente definidor dos traços culturais de cada grupo social, que La Blache atribuiu a designação de gênero de vida, um atributo que, em uma condição de equilíbrio entre população e recursos, tenderia a reproduzir-se da mesma maneira, ad eternum.

Em outras palavras, um dado grupo, vivendo sem pressões demográficas e com acesso irrestrito aos recursos necessários à sua manutenção, não teria por que buscar avanços, já que não havia problemas a serem solucionados. O grupo estaria, assim, condenado a viver “imerso em localismo” ou, sem o menor eufemismo, na mais rústica e bárbara condição de vida.

Os fatores que levariam à superação daquele estágio sociocultural mais básico seriam a escassez de recursos, que levaria o grupo a um aprimoramento das técnicas para obtenção de maior produtividade na sua busca, o crescimento populacional, impelindo o grupo tanto à solução anteriormente aventada quanto à sua própria divisão, criando-se novos núcleos, e, por fim, o contato com outros gêneros de vida mais avançados.

Esta última condição era, para La Blache, o elemento-chave do progresso da humanidade, pois, através do estabelecimento de contatos duradouros com culturas mais “desenvolvidas”, grupos mais rústicos teriam a oportunidade de conhecer hábitos e técnicas que lhes permitissem, enfim, tornarem-se verdadeiras civilizações.

Partindo da premissa de que a cultura e as tradições de um grupo são um dado ao qual se pode atribuir qualificações de superioridade e inferioridade, Paul Vidal de La Blache proporcionou ao Estado francês o discurso de legitimação necessário à ação colonizadora que empreendia no Caribe, África e na Ásia ao longo do século XIX.

Significa afirmar que, aos olhos do eminente cientista e das elites hegemônicas do seu país, toda a espoliação promovida pela devastadora ação imperialista francesa teria sido, na verdade, um ato de altruísmo. A impiedosa dominação de territórios pela França deveria ser encarada, portanto, como a concessão de uma oportunidade única aos dominados de, enfim, viverem as comodidades permitidas apenas às sociedades civilizadas.

Com o passar dos anos, porém, novos discursos tomaram lugar no pensamento científico e as idéias professadas por La Blache foram superadas, seja através do reconhecimento do papel pouco nobre que a sua teoria desempenhou no projeto colonizador europeu ou, mais recentemente, por meio da busca de novos paradigmas que pregam a liberdade plena do Homem como condição fundamental para se atingir o Desenvolvimento.

Desta forma, reconhecer a necessidade de implantar um processo civilizatório na sociedade deve passar pelo imperativo de devolver ao conceito de Civilização a sua idéia original, definindo-a através de parâmetros relativos ao progresso social, político, artístico-cultural e econômico (mas não apenas econômico) de um grupo social complexo, uno e múltiplo em sua essência.

Sendo assim, não há por que agradecer ao buana dos cerrados baianos por nos ter ensinado a beber vinho seco sem acrescentar adoçante. Afinal, ser civilizado é mais que isso.

Por Paulo Roberto Baqueiro Brandão

terça-feira, 14 de setembro de 2010

"O Processo Civilizatório", por Márcio Lima

Durante certo tempo, tive bastante receio – para não dizer pudor – em expressar algumas ideias, tais como as que expus no último texto. Sempre me lembro de um estudante que reclamava de um professor da UFBA por este falar tão mal da cidade que lhe propiciava o “ganha pão”. Meu receio, contudo, não era o de julgar que não se deve maldizer o lugar onde se ganha o salário, mas simplesmente por respeitar esse sentimento a que podemos chamar de ufanismo, patriotismo, amor à terra etc. Eu mesmo, por exemplo, talvez não gostasse de ouvir de um argentino, morando no Brasil, que o tango é melhor música que o samba, que o nível de escolaridade, de cultura, assim como o bem estar social deles é maior que o nosso; que eles já receberam prêmios Nobel, enquanto nós nunca; que nenhum escritor brasileiro chegou ao nível de Jorge Luis Borges. A única coisa que eu poderia dizer em nosso favor é que o futebol brasileiro é melhor que o argentino, arrolando em seguida os nossos títulos de copa do mundo. Ainda assim, como sabemos, eu ainda teria de ouvir que Maradona foi melhor que Pelé. Aqueles fatos parecem lhes dar o direito a essa arbitrariedade. Conheço, portanto, os melindres que o amor à terra desencadeia. Por outro lado, acredito que o ufanismo pode bem ser o ninho onde é chocado o ovo da serpente.

Volto, assim, a uma questão que havia trazido à cena, e que considero o centro em torno do qual as reflexões sobre os problemas de Barreiras devem orbitar. Por que, estando numa região privilegiada em termos naturais, e sendo produtora de certa riqueza, a cidade é tão malcuidada. Só mesmo um estudo que una investigações históricas, geográficas e sociológicas pode dar uma resposta mais concreta a essa questão, traçando um panorama do desenvolvimento por que passou Barreiras desde o início do ciclo do agronegócio. O que quero expressar são apenas alguns esboços que se delineiam de uma perspectiva mais cultural, pois acredito que a cidade que temos hoje é fruto de um processo “civilizatório” que foi se sedimentando durante seu desenvolvimento.

Como os textos do blog têm expressado até hoje, julgo que problema da cidade é antes de tudo político. Não resta dúvida de que os poderes públicos deveriam conduzir o andamento da cidade; se a partir dos anos 80 teve início em Barreiras um ciclo de crescimento econômico, que engendrou naturalmente o crescimento urbano e populacional, as esferas públicas deveriam ter cuidado para que o processo fosse desencadeado de tal forma que não tivéssemos uma cidade como a que se tem hoje. No entanto, ainda há dois componentes fundamentais para a composição da cidade: o setor econômico e a sociedade civil. Quando vemos a atuação desses dois segmentos, a situação não é mais animadora.

Meu olhar de través para a criação do Estado do Rio São Francisco começou quando vi um dia, na porta de uma mansão situada em meu percurso, todo o entulho de construção jogado bem no meio da rua, e o dono da casa saindo com um desses carrões estampando o adesivo em favor do desmembramento. Nesse caso, ainda considero a ausência do poder público o fator fundamental para criar e desenvolver-se com muita força uma cultura que ela é própria danosa à cidade. Antes de citar alguns exemplos que ilustram isso, quero afirmar que a ausência do poder público é essencial para que o espaço comum seja transformado no depositário do lixo privado. Ora, desde os primórdios das reflexões éticas e políticas, sabe-se que quando a sociedade não cultivou ainda costumes que sirvam ao bem comum, o império da lei obriga seus homens a agir em prol da comunidade, até que tais hábitos se tornem costumes (a palavra ética vem do grego – ethos – e seu sentido mais forte é justamente costume). Como os donos do poder não cumpriram – e não cumprem – seu papel, temos hoje uma cidade onde muitos jogam lixo, entulho, restos de construção onde querem; bairros que surgiram sem planejamento, cujas ruas não têm sequer nome, quem dirá CEP; não poderia, claro, deixar de mencionar o asfalto, pra não dizer que não falei das flores. Ao fim e ao cabo, a atuação da sociedade civil se harmoniza tão bem com o poder público que um passa a ser o espelho do outro. Antes que essa afirmação gere qualquer melindre, o caso é ainda mais grave do que aquela frase de todos conhecida de que cada povo tem o governo que merece. Não se trata disso.

A sociedade civil não pode ser identificada imediatamente com “povo”. Para efeitos de minha discussão, por exemplo, uma questão complexa é justamente a diferença entre o povo barreirense e sua sociedade civil. Quando digo povo, não me refiro apenas aos aqui nascidos, mas também a quem mora, trabalha, paga seus impostos, gera renda, joga lixo na rua, polui o Rio de Ondas etc. Nesse sentido, o povo de Barreiras é, para mim, a melhor expressão de um lugar exemplar. Já quase há uma identidade formada pela heterogeneidade, além de uma cidade com ar cosmopolita. Todavia, é desastrosa a forma como a sociedade civil põe em prática sua “urbanidade”. E é esta, não o povo, que se emparelha com o poder público. Mas em termos civilizatórios, Barreiras não tem contra si apenas essas duas esferas, mas também a econômica.

Com a decência da vida política e cultural, bem como com o desenvolvimento urbano, o agronegócio não quer ter nenhum envolvimento, não quer fazer a cidade desenvolver-se. Ele chega, expande suas garras, e o desenvolvimento surge a reboque, por aquilo que inevitavelmente medra a partir de sua riqueza. Imposto e atração de uma rede de serviço e de comércio. Quando penso nos três setores tradicionais da economia, lembro-me de que a indústria se preocupa em promover cultura, ensino, tal como o comércio. O SESC é um serviço nacional importante, da mesma forma os serviços regionais da indústria, como o SESI e o SENAI. E o agronegócio, o que oferece à população nesse sentido? O ambiente cultural criado em torno dele é algo deletério. É um estilo de vida frívolo e vazio, quando não vulgar, exemplificado no cultivo de vida que bem se expressa na música sertaneja e todas as suas variantes.

Há quatro anos em Barreiras, não me lembro de ter acontecido na cidade alguma apresentação de música popular que não fosse de axé ou de sertaneja. O pianista Artur Moreira Lima passou por aqui com seu caminhão musical. Mas isso foi uma iniciativa dele, que com apoio da Petrobrás tem recursos para levar ao interior do país música erudita. Não foi um projeto da prefeitura, tampouco dos “agentes culturais”. Nem aqueles cantores de MPB que faziam sucesso nos anos 70, que estão no nível de Zé Ramalho, mas cuja presença não se impôs, vem a Barreiras. Podem ir a Ibotirama, Barra, São Desidério, aqui jamais. Na cidade não há público, dinheiro, pessoas dispostas a pagar para assistir a bons espetáculos? Estou certo de que há. Isso, a meu ver, é uma forma de vida cultural cultivada a partir da influência do agronegócio. Isso talvez explique por que saneamento básico e asfalto, fatores decisivos para diferenciar o espaço urbano do rural, inexistam em Barreiras. A cidade parece ter-se tornado um lugar encravado no grande fazendão do agronegócio. E tome música sertaneja.
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Eu havia iniciado este texto antes de ser publicada a matéria da Veja, que tem desencadeado reações, por assim dizer “ufanistas”. Confesso que o título do texto, embora se valha de uma expressão clássica, foi motivado pela reportagem.

Por Márcio Lima

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

"O Público e o Privado em Barreiras", por Márcio Carvalho

Vou descrever brevemente uma saga pessoal em Barreiras, mas que certamente vários leitores deste blog já enfrentaram; depois, uma análise política sobre o caso.

Quando cheguei em Barreiras, já há quase dois anos, uma das minhas primeiras providências foi procurar por uma conexão de internet. A monopolística OI não tinha (e não tem até hoje) nenhuma linha Velox disponível. Amigos me indicaram alguns "particulares" que teriam linhas: rejeitei, por achar um absurdo "contrabandear" uma conexão. Finalmente, assinei um serviço 3G da Vivo, que afirma disponibilizar uma banda de 1MB, mas, na real, funciona a maior parte do tempo como uma conexão discada (56kbps), quando não cai... Esta maravilha do mundo moderno pela bagatela de R$119 mensais!

Pois bem, depois de mais de um ano e meio, desisti da "Morto" (Vivo), de receber um serviço (ao menos) decente, de meus princípios, enfim. Liguei para um "particular" que, supostamente, poderia me ajudar. Ele tem dois "planos de assinatura":

1) Ele mesmo tem uma conexão (comercial, deve ter sido obtida há algum tempo) de 8MB e compartilha, por R$50 mensais, uma banda de 500kbps, por rádio; ou
2) O "particular" tem linhas da Velox/OI para "vender" por R$1.000; neste caso, ele transfere a linha para mim, e eu vou pagar os mesmos R$120 mensais para a OI (por um serviço sem dúvida melhor do que meu atual, mas ainda assim ruim).

E aqui terminam minhas lamúrias e começa a análise política.

Esta situação é herdeira de uma questão histórica no Estado brasileiro: a confusão entre "público" e "privado". Em nosso país, desde cedo, o poder público sempre dividiu seu poder com "particulares", usualmente detentores do poder econômico. Quando nos tornamos um Império, a população ia pedir favores à aristocracia, à realeza, detentora do poder político (e, portanto, público), mas sempre numa relação pessoal.

Ao nos tornarmos República, os altos postos do governo sempre foram ocupados por membros da elite econômica. Isto significou a transposição de um modo pessoal de funcionamento para dentro da burocracia brasileira; por exemplo, os "coronéis" ou usineiros, que exerciam um poder paralelo ao do Estado formal se tornam, eles mesmos ou seus parentes, parte da máquina do Estado e ocupantes de cargos eletivos.

Aqui voltamos ao meu caso com a internet. A Telemar/OI é um quase-monopólio privado resultante da privatização (doação) atabalhoada do antigo monopólio público, na era FHC. Nosso "particular" descrito acima certamente tem relações com antigos funcionários da Tele (ou talvez fosse, ele próprio, um funcionário ou um terceirizado) e, quando da oferta inicial de linhas de internet na cidade, usou desta relação para adquirir várias linhas e, inclusive, um link que nem a UFBA hoje tem disponível. O público, invadido pelo privado, retroage sobre o privado/privatizado: privatiza-se o lucro, mas muito dos custos e as relações continuam iguais, uns coletivizados, os outros "particulares".

Outra - e mais grave - instância da mistura público/privado em Barreiras é o funcionamento da Prefeitura Municipal. Chega-se lá e o que se vê é um amontoado de pessoas ("particulares") indo pedir favores (empregos, em geral); essas pessoas ficam numa sala de espera, e a assessoria da Prefeitura funciona como "ACESSO-ria": escolhe que vai ter acesso à Prefeita.

A Prefeitura, assim, funciona como um balcão onde a "pessoa" da Prefeita vai ouvir os pedidos dos "particulares", em uma relação privada. A Prefeitura, ao contrário, deveria funcionar como um órgão público, o Estado neste Município: uma instância sempre pronta, sim, a ouvir e receber demandas coletivas e atendê-las enquanto instituição, não de maneira pessoal.

Como mudar isso? Esta situação já tem melhorado em outro lugares do país. Mas isso exige controle e pressão populares, conscientização - uma vez que também deve partir da população o abandono de práticas personalistas como estas - e voto. Voto naqueles dispostos a resolver questões da coletividade, e não dados a promessas de caráter individual. Voto naqueles que conseguem agir como pessoas públicas e tratar o Estado como uma instituição de atendimento de interesses públicos - e não particulares.

Vote bem, vote em quem tem propostas para o Município e a região, e não apenas naquele que pode, um dia, te dar um emprego ou outro benefício. (Em tempo: não estou, com este texto, apoiando nenhum candidato, mas, apenas, uma discussão política mais qualificada, que fuja aos lugares-comuns da corrupção, do empreguismo e do personalismo).

Por Márcio Carvalho