A região que hoje é o Oeste da Bahia pertencia, no período colonial, à capitania de Pernambuco. Devido a duas tentativas de separação da região de Pernambuco a fim de formar um país independente, o Oeste foi anexado, por ordens reais, primeiro a Minas e depois à Bahia. A anexação definitiva, por decreto de D. Pedro I, é de 15 de outubro de 1827. Haveria, portanto, razões históricas que justificariam o desmembramento destas terras para criar um novo estado. Todavia, conforme escreve Ignez Pitta em seu livro Barreiras, uma história de sucesso, “Consta que, entre os anos 1540 e 1550 Duarte Coelho mandou construir barcos acima da cachoeira de Paulo Afonso, a fim de poder subir o curso do Rio São Francisco, realizando a expedição, em que conheceu e ultrapassou Bom Jesus da Lapa. Os fortes ataques dos índios, porém, residentes às margens do Opara, como chamavam o São Francisco, impediram que Pernambuco pudesse colonizar a região, que era mais próxima da Bahia e foi sendo povoada por baianos. A própria Bahia tem 51% do seu território situado no polígono das secas e por isso os pioneiros iam entrando cada vez mais longe, à procura de terras para plantar e criar gados” (p. 18).
A natureza do argumento é bem clara. Desde muito cedo, embora pertencendo à capitania de Pernambuco, a região Oeste foi povoada por baianos. Por si só, isso, obviamente, não desmerece a reivindicação do desmembramento. O que tal fato mitiga é a crença numa formação histórica da região como se fosse estranha à Bahia, como se o estado tivesse visto cair em seu colo uma região que não lhe pertencia. Tal apelo nos faz às vezes pensar que existia uma região rica, pujante, sólida, que foi retirada de Pernambuco como represália e dada à Bahia. Conferindo de perto os eventos, é possível notar que no século XVI o Oeste estava sendo povoado por baianos. Em 1827 a região foi anexada à Bahia e, para ficar no caso mais paradigmático, Barreiras, sua cidade principal, surgiu quando a região pertencia aos baianos.
Na verdade, não acredito que esse apelo histórico tenha muita relevância para os argumentos (há algum?) que justifiquem a criação do estado do Rio São Francisco. Ele reveste-se, porém, dos mesmos sofismas de outras reivindicações. Basta analisar o tipo de relação que o Oeste mantém com o poder central em Salvador para comprovar isso. Em sua história política e social, o lado à margem esquerda do São Francisco constituiu-se como parte integrante da Bahia; querer justificar as mazelas da região como sendo fruto do descaso do estado é um discurso que serve bem a interesses particulares – mesmo que a muitas particularidades – e não a um projeto coletivo que vise à grandeza política, econômica e cultural da região. Querem ver? Quando emanciparam Mimoso do Oeste, qual nome puseram na nova cidade? A região que quer livrar-se da Bahia retirou o nome que fazia referência a sua vegetação para homenagear a família mais influente do estado por mais de cinquenta anos. E a toponímica da própria Barreiras também é um exemplo disso, com sua Praça Castro Alves, Avenida ACM, Cleriston Andrade e assim por diante. Como contou Ignez Pitta em palestra recente na UFBA, quando quiseram homenagear Geraldo Rocha, ele pediu que a homenagem fosse para seu pai, Antônio Geraldo, cujo nome foi dado a uma importante escola pública de Barreiras. Depois disso, qual homenagem prestaram a Geraldo Rocha? Será que os nomes antes citados são mais importantes para a região que o dele?
Poderão objetar-me que a articulação que resultou na emancipação de Mimoso não representa o Oeste, mas apenas um setor dele. De minha parte, não vejo muita diferença. Mais uma vez, vão se acumulando exemplos que demonstram a forma com que o Oeste se posiciona diante da Bahia, realçando as falácias que envolvem o discurso “criacionista”. O caso de LEM é sintomático porque reflete o fisiologismo com que é conduzida a política nessas paragens, um exemplo do que há de mais retrógrado no Brasil. Até onde sei, o crescimento de Barreiras na primeira metade do século XX está assentada, antes de tudo, no empreendedorismo da região, levado a frente por nomes como o do já mencionado Geraldo Rocha. A história da cidade está imiscuída na história da Bahia, sendo que um barreirense chegou a Governador do estado: Antônio Balbino.
Sobre isso, aliás, Luiz Pamplona relata fatos interessantes em seu livro, Barreiras, Bê-A,...da BARRA pra cá (Cf. p. 173-175). Quando, em 1954, Antônio Balbino tornou-se governador, não fez a maioria na Assembléia, tendo a oposição um deputado a mais. Por alguma razão, o distrito de Brejo Velho, hoje Brejolândia, teve as urnas canceladas, marcando-se novas eleições. Um certo ACM, filho de Magalhães Neto, amigo de Balbino, havia concorrido ao Legislativo e perdido, ficando 300 votos atrás do último colocado eleito. Apesar de ACM ser da UDN, partido de oposição ao seu, Balbino fez arranjos a fim de eleger ACM, atraindo, numa manobra política, a simpatia dos adversários. Vê-se que o jovem ACM iniciou sua vida pública elegendo-se por conta de urnas canceladas e novas eleições marcadas, e por adesão a adversário, cuja interferência viabilizou seu ingresso na Assembléia Legislativa. Pamplona relata ainda que ele pagou depois esse favor a Balbino, intercedendo, depois do golpe de 1964, junto ao presidente Castelo Branco, para que o ex-governador da Bahia não fosse cassado. Tal episódio reforça a relação entre os homens públicos do Oeste e os da Bahia. Gostaria de saber de que modo essa relação se constituiu desde o tempo da ditadura. Será que depois da dupla Balbino/ACM, os homens de Barreiras e do Oeste que conduziram a vida pública mantiveram uma relação crítica e de afastamento do poder central em Salvador? A criação do Estado do São Francisco é uma reivindicação sustentada por um histórico de lutas e oposição locais à Bahia? Ou, antes, o episódio de 1954 é apenas o marco de uma história contínua? Talvez isso explique por que, em vez de referir-se à vegetação regional, a cidade-símbolo do novo Oeste homenagear aliados históricos.
Por Márcio Lima
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