Os astecas formaram uma vasta civilização no centro do México antes da chegada dos europeus na América. Com economia e política baseadas na integração das diversas cidades do Império, atingiram um nível de complexidade que lhes permitiu avançar como uma das mais proeminentes sociedades pré-colombianas. Disso resultou uma acumulação de conhecimentos que fez desse povo uma civilização extremamente sofisticada em termos tecnológicos e culturais, dominando conhecimentos em astronomia, climatologia, medicina e engenharia hidráulica, entre outros. Uma constatação disso é o fato de um dos seus principais centros urbanos, Tenochtitlán, ter sido erguido no meio do majestoso Lago Texcoco e as estruturas criadas na sua origem para “domar” as águas, as chinampas, terem sido aproveitadas pelos espanhóis quando fundaram a Cidade do México, uma das maiores do mundo nos dias atuais, justamente sobre as ruínas da grande capital asteca.
Ocorre, porém, que a despeito dos avançados conhecimentos tecnológicos e da refinada cultura que possuíam, os astecas eram extremamente supersticiosos (algo comum às civilizações da Antiguidade), o que dava vazão às interpretações míticas de toda e qualquer situação ligada à sua ancestralidade, economia, política ou mesmo à vida cotidiana. Muito por conta disso, os astecas eram politeístas, o que resultava na crença em várias divindades ao mesmo tempo, cada uma delas responsável pela manutenção do equilíbrio de certos aspectos da realidade do povo. Entre os deuses da mitologia asteca, o mais venerado era Quetzalcóatl (a Serpente Emplumada ou Pássaro-Serpente), a deidade que controlava as forças da vida, da fartura das matas, do alimento que sustentava o corpo e a alma, sendo, por assim dizer, a representação da bem-aventurança.
Assim, se havia uma crença em um deus tão poderoso e venerado, não poderiam deixar de existir aqueles que eram considerados os seus interlocutores, os comunicadores das massas que levavam pedidos ao grande Quetzalcóatl e traziam, da parte dele, as orientações e, por vezes, as reclamações naqueles momentos em que as suas vontades divinas não eram satisfeitas. Esses eram os sacerdotes, homens revestidos de grande poder e com capacidade de influenciar até as decisões mais estratégicas dos imperadores, pois mesmo os intocáveis soberanos astecas tinham receio da ira dos deuses.
Tais líderes religiosos, pessoas de carne e osso, com interesses e desejos mundanos, acostumados a usarem adornos preciosos e caros e comerem o que havia de mais requintado na gastronomia asteca, eram detentores da capacidade de determinar a vida ou a morte de todo um povo. Esse poder era utilizado de maneira ampla, não só para galgarem posição de destaque em uma sociedade rigidamente hierarquizada, mas também para obterem vantagens pessoais, algo conseguido, na maioria das vezes, através da ameaça de uma “conversa ao pé do ouvido” com a Serpente Emplumada para tratar da desobediência daquele que não lhe contemplasse com o atendimento imediato de um pedido. Contestar um homem desses era, portanto, uma forma de garantir um lugar nada agradável no Mictlan, o inframundo para os astecas.
A crença no sacerdote e na sua posição privilegiada de interlocutor dos deuses parecia ser, para os nobres e para a população em geral, a maneira mais correta de buscar o equilíbrio entre o mundo divino e o mundo terreno. Esses “escolhidos” garantiriam a eternidade do povo asteca, com a clemência do deus emplumado. Porém, a queda do Império Asteca ocorreu justamente pelas mãos de um sacerdote de Quetzalcóatl, ou melhor, pela astúcia de quem o líder religioso presumia ser o grande deus.
Em 1519, Hernán Cortez fincou os pés na costa oriental do México com a incumbência de destruir toda e qualquer resistência ao avanço da Coroa Espanhola no Novo Mundo. Seu desembarque coincidiu com a data que o astecas assinalaram no seu calendário como o momento do retorno de Quetzalcóatl, que, de acordo com a mitologia, estaria em exílio no leste (vindo, portanto, do litoral oriental). Isto, aliado ao fato de Cortez ter cabelo e barbas loiros – confundidos com a plumagem branca do Pássaro-Serpente – e vestir paramentos reluzentes, levaram o sacerdote do Imperador Monctezuma II a crer que o espanhol era a personificação do tão aguardado deus. Pelo poder de influência que detinha junto à corte, foi fácil para o líder religioso convencer o soberano asteca a receber bem o militar vindo de longe, que não encontrou a menor resistência ao se encontrar com os nativos mesoamericanos.
Daí por diante, o que se viu é sobejamente sabido: toda uma rica civilização foi dizimada pela violência e doenças que os ibéricos despejaram sobre uma população atônita com a escabrosa ira que o seu deus mais querido lhe proporcionava. A verdade, porém, era outra: a crença cega de um governante nas palavras de uma pessoa que se dizia escolhida e privilegiada por um deus o levou ao próprio fim, bem como ao sacrifício em massa de milhares que viviam sob a sua soberania, em um episódio apocalíptico no qual política e religião se misturaram da pior maneira possível.
Infelizmente, à História não é dada a importância devida e muitos de nós passamos por cima das lições que os acontecimentos pretéritos nos poderiam legar. Os fatos ocorridos no México central durante o processo de colonização da América pelos espanhóis não são os únicos que, ao longo do tempo, exemplificam o quanto pode ser prejudicial à sociedade o estabelecimento de relações promíscuas entre política e religião. Se antes a devoção acabou sendo utilizada como parte da estratégia de conquistas territoriais, nos dias de hoje, muitos são os que se julgam “escolhidos” e fazem uso inescrupuloso da boa-fé de uma grande parcela da população que orienta a sua vida a partir de crenças e valores religiosos para garantirem suas conquistas eleitorais.
Hoje em dia, grupos cada vez maiores de fiéis religiosos se tornam um nicho amorfo de eleitores que confiam cegamente em seus representantes e estes, quando mal intencionados, mesmo despidos da plumagem e das vestes reluzentes que facilitaram o trabalho genocida de Hernan Cortéz, não se rogam em fazer uso das armas de convencimento que lhes permitem dissimular sua débil capacidade de debater questões políticas utilizando o velho – mas ainda eficaz – discurso da evocação divina. Tenhamos fé, pois, que essas “divindades” que descem à Terra não transformem a nossa cidade em uma nova Tenochtitlán, destruída em sua forma e esplendor pela má interpretação dos sinais que avisam dos perigos que se avizinham.
- por Paulo Baqueiro
(Professor da UFBA)